Wilson Figueiredo é homenageado no Jornal Folha de S.Paulo
12 de dezembro de 2011
O quinto elemento
São Paulo, BR – domingo, 11 de dezembro de 2011
Figueiró, o sujeito que ainda se ruboriza
RESUMO Wilson Figueiredo, 87, adotado pelo mundo intelectual mineiro, tem a biografia esmiuçada em novo livro. Jornalista há 65 anos, foi poeta na juventude e recebeu incentivo de Mário de Andrade. Ainda assim, mandou recolher os livros de poesia que publicou -mas revela à Folha que pretende lançar volume de inéditos.
ALVARO COSTA E SILVA
E se o famoso quarteto de escritores mineiros -Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos- fosse, na verdade, um quinteto?
Para começar, o personagem oculto deveria ter sido amigo íntimo dos outros quatro; pertencido à mesma geração que “puxava angústia” nos bancos da praça da Liberdade, em Belo Horizonte; trocado cartas com Mário de Andrade; ido ganhar a vida no Rio; vivido e pensado o Brasil politicamente; sonhado com a literatura e a realizado, esbanjando talento.
Só um homem -aos 87 anos, com a cabeça inteiramente branca, mas voz, gestos e passos ainda firmes devidos à ginástica diária- cumpre todos os requisitos da lista: o jornalista Wilson Figueiredo, quinto elemento que, mineiramente, desdenha a glória. “Os quatro formavam um grupo fechado, cuja harmonia se devia a, quando estavam em três, falar sempre mal do ausente”, diz à Folha.
Ele lembra com clareza a ocasião em que esbarrou na turma pela primeira vez. Tinha 18 anos e morava numa pensão na rua da Bahia. Estudante primeiro de medicina, para satisfação do pai, e depois de letras, por inclinação própria, não demorou a ficar amigo do futuro crítico de teatro Sábato Magaldi, primo de Hélio Pellegrino. Feitas as apresentações, jamais esqueceu o fornido capote preto de Otto Lara Resende e o ar levemente desolado de Paulinho Mendes Campos: “Logo o Hélio me apelidou de Figueiró. Pegou”.
Também fazia parte do grupo o jornalista político Carlos Castello Branco, o Castellinho, que um dia perguntou àquele jovem de bigodinho que vivia sobraçando livros: “Sabe datilografar? Não tem problema. Aprende”. Como redator e tradutor da Agência Meridional, foi um dos primeiros brasileiros a saber da explosão da bomba atômica em Hiroshima, à medida que as agências internacionais despejavam quilômetros de telegramas.
CAPIXABA – Ao contrário do que se tem como verdade inquestionável, Figueiró não é mineiro. Nasceu na pequena Castelo, no Espírito Santo, descendente de austríacos pelo lado do avô materno. “Não é minha culpa não ter nascido em Minas. Imperdoável é nunca ter enfrentado o medo de voltar a Castelo para acertar contas íntimas”, revela ele, que mora no Rio desde 1966. Na época comprou a preço de ocasião um apartamento no Leblon, assumindo as dívidas do antigo proprietário, o sempre enrascado financeiramente Nelson Rodrigues. Lá viveu 30 anos e, quando mudou de rua, continuou no bairro.
Quando ainda vivia em Belo Horizonte e Mário de Andrade visitou a cidade, em 1944, o jovem jornalista estava na estação de trem para recebê-lo. Mal o mito modernista embarcou de volta -após noites regadas a chope e sambas em dueto-, iniciou-se a correspondência.
“Meu caro Figueiró”, escreveu Andrade, “acabo de ler seus versos. Você já é poeta, mas só não será poeta como constância de sua vida se não quiser. Se, quando você chegar aos 38 ou 40, lembrar que foi poeta e virou funcionário público, ‘argentinos’ de velhas de estações de águas, ou pai de família só, Figueiró, não bote a culpa na vida, o culpado será você.”
Depois de tal incentivo, o novato tratou de pegar o touro à unha. Com o material publicado na revista “Edifício” -criada por ele, Sábato Magaldi, Autran Dourado e Francisco Iglesias-, lançou os volumes “Mecânica do Azul”, em 1946, e “Poemas Narrativos”, em 1948. Sábato ainda hoje reconstitui, de cabeça, os versos “Nomes das mulheres que amei me sobem à boca/ com golfadas de sangue e choram aos meus ouvidos”.
Mas o próprio poeta não estava satisfeito com o resultado. Mandou recolher as edições quando apenas uma pequena parte delas chegou às livrarias. “De maneira geral, não sou indeciso. Mas, para mim, literatura funciona dialeticamente: gosto e já não gosto”.
O jornalismo, que cada vez lhe ocupava mais tempo, sempre serviu de explicação para o abandono da poesia. O que poucos sabem -só a mulher, Lourdes, os quatro filhos e amigos mais chegados- é que ainda mantém uma relação secreta com as musas. Jamais parou de escrever, em recolhimento. As gavetas estão abarrotadas. E tomou a decisão de abri-las. Figueiredo vai lançar um novo livro, com a produção poética dos últimos 50 anos, provavelmente em 2012.
DESGRAÇADO – Hoje, ao reler os poemas da juventude, sente-se melhor. Tanto que permitiu a inclusão de um deles, “Close-up de uma Segunda-Feira”, no recente “E a Vida Continua: A Trajetória Profissional de Wilson Figueiredo” [Ouro sobre Azul, org. Moacyr Andrade, 220 págs., R$ 85]. O volume traz vasta iconografia e cronologia, além de artigos esparsos de Figueiredo, que contribui ainda com depoimentos escritos especialmente para a edição.
Com 65 anos de jornalismo – desde 2004 trabalha na agência de comunicação interna e externa FSB, sentindo-se à vontade no chamado “outro lado do balcão”-, o homenageado não gosta de pensar que possa ser o mais antigo profissional em atividade no país. “Há de haver outro desgraçado, e ainda mais velho, por aí”, brinca. Entre seus planos, além do livro de poesia, estão as publicações de uma coletânea de artigos políticos e outra com seus prefácios.
A trajetória até aqui é espantosa: como repórter, redator, editor, colunista, cronista ou editorialista, cobriu o fim do Estado Novo, a constituinte de 1946, o suicídio de Getúlio Vargas, os anos JK, as loucuras de Jânio Quadros (chegou a prever, com dias de antecedência, a renúncia), os anos da ditadura, as Diretas Já e a redemocratização, a saída de Collor, os tempos de instabilidade política com FHC e Lula.
Sua casa, o “Jornal do Brasil”. De novo pelas mãos de Castellinho, chegou ao prédio da avenida Rio Branco, no Rio, em 1957, no limiar de uma revolução. O primeiro passo da famosa reforma do “JB”, comandada por Amílcar de Castro na parte gráfica e Janio de Freitas na Secretaria de Redação, foi retirar os classificados da primeira página. Na verdade, por décadas eles permaneceram disfarçados em forma de “L”, privilegiando-se o texto sem fios, fotos maiores e a manchete em oito colunas.
Chefe do copidesque do “JB” na época, o poeta Ferreira Gullar, hoje colunista da Folha, recorda que Figueiredo, ocupando cargos de chefia no processo de renovação, “falava a linguagem da gente”. Para muitos, ele era a encarnação do jornal. “Me deu o primeiro emprego de repórter e, na greve de 1962, tentou de todas as maneiras impedir que eu fosse demitida -infelizmente, sem sucesso”, lembra a escritora Ana Arruda Callado.
Com a reforma consolidada e o prestígio do “JB” em alta, comandava a reunião dos editorialistas numa mesa de mogno. Redigia os longos textos assinados pelo diretor Nascimento Brito, segredo que toda a redação conhecia. E arrumava tempo para inventar bossas, como a coluna política “Informe JB”, da qual foi o primeiro titular.
“Figueiró guardou seu talento na seção de editoriais do ‘JB’. Por certo alcançaria projeção como ensaísta, comentarista político e, não tenho dúvida, cronista: escreve magnificamente, é bem-humorado, perceptivo e amplamente culto”, elogia Janio de Freitas, hoje também colunista da Folha.
Só deixou o jornal em 2003, o princípio do fim levado a cabo pelo empresário Nelson Tanure, que, após deixar falirem a “Gazeta Mercantil”, em 2009, e o “JB”, em 2010, ficou conhecido como “coveiro de Gutenberg”.
RUBOR – “Amigos, vivemos uma época lívida, em que ninguém se ruboriza mais, ou por outra: o único sujeito que ainda se ruboriza, no país e no mundo, é o Wilson Figueiredo”, escreveu Nelson Rodrigues em crônica de 1963.
Nos bons tempos do “JB” da avenida Rio Branco, costumava receber na redação a visita do amigo Nelson. Com ilustres de carne e osso -Pellegrino, Mendes Campos, José Ramos Tinhorão, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção-, Figueiredo acabou personagem do romance “Asfalto Selvagem”, obra de ficção que deveria ser editada com índice onomástico.
Na trama do folhetim publicado em 1959 no jornal “Última Hora”, o juiz de direito Odorico Quintela tem duas obsessões: a bela protagonista Engraçadinha e… Otto Lara Resende. Para conquistar a primeira, vale-se da ajuda do segundo, ou melhor, de um soneto de Otto. Quem fornece a dica dessa preciosidade poética é Wilson Figueiredo, com a ressalva de que o soneto havia sido pensado de trás para frente e dele só se escrevera de fato a chave de ouro: “E entrego o corpo lasso à cama fria”.
Com essa enorme bagagem, Figueiró, ao acordar todos os dias bem cedo e imediatamente iniciar a leitura dos jornais, ainda se pergunta: “Por que não se faz uma campanha na imprensa contra a corrupção nos cargos públicos?”.
Como se vê, continua sendo o único sujeito que ainda se ruboriza no Brasil.
Foi um dos primeiros brasileiros a saber da da explosão da bomba atômica em Hiroshima, à medida que as agências despejavam quilômetros de telegramas
Na época, comprou a preço de ocasião um apartamento no Leblon, assumindo as dívidas do antigo proprietário, o sempre enrascado financeiramente Nelson Rodrigues
Com 65 anos de jornalismo, não gosta de pensar que possa ser o mais antigo profissional em atividade no país. “Há de haver outro desgraçado, e ainda mais velho, por aí”